Um bom dia para morrer

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Não, este não é um conto relacionado a franquia de filmes ‘Duro de Matar’. Até que seria legal ler mais uma aventura do policial John McClane, ler, não, assistir, só que este não é um conto de aventura de pessoas descalças andando por cacos de vidro e correndo por dutos de ar maior que o normal para matar o vilão.

Aliás, aqui, neste breve conto, no fim acontece justamente o que você está pensando acontecer. Aliás, parte 2, se não existir uma conjunção subordinativa condicional divina, isto é, se não houver a vinda do filho de Deus, que é líquida e certa, no nosso tempo, o que nos aguarda é o mesmo fim, mesmo que talvez não seja tão bom como o de Carlos.

Mas, sem mais, vamos lá.

Não chovia quando ele acordou e nem uma única gota pensou em cair em qualquer outro momento daquele dia. O sol reinava soberano no céu sobre as poucas núvens abaixo dele. E, sabe, elas se tornaram ainda mais belas em seus desenhos disformes pelo destaque que a tal estrela luminosa de fogo as deu. O azul do céu naquele dia era de um tom firme, forte e sem qualquer vestígio de medo. Você precisava estar lá pra ver como estava bonito.

Na rua se via mães e pais apressados correndo para os carros porque estavam atrasados para deixarem os filhos nas escolas e então irem trabalhar. Só que aquele dia era um dia de folga para Carlos e sua esposa. Ambos trabalharam duro durante no dia anterior e naquela madrugada cuidaram da filha que jazia remelenta em sua cama ao dormir o sono dos justos. A menina, que ainda era uma bebê, tinha tido febre. Seus pais a medicaram e deram banho na banheira rosa de plástico para conter a temperatura – o que conseguiram. Ainda assim, a noite tinha sido bastante alegre. Entre taças de vinho, um bom jazz ao fundo e conversas sobre os planos de reformar a sala, a noite passou rápido.

Mas, tá, Carlos acordou e foi tomar seu café. Nada de mais ou de menos. Café com leite e um pão com margarina porque a manteiga tinha acabado dois dias atrás e também não tinha requeijão.

Assim que beijou sua filha remelenta e afagou a parte de trás da cabeça de Júlia, Carlos colocou a bermuda preta, vestiu a camisa do seu time de coração e foi correr. Perdão, correr não era uma opção porque sempre que corria o interior de suas pernas assavam. Ele foi caminhar. Quando desceu a portaria do prédio, colocou os fones de ouvido, ligou o bluetooth do celular e colocou The Sing Team para tocar depois de ajeitar o chapéu velho e sujo que ganhou da sua filha no dia dos pais. Os 5 kilometros de caminhada foram feitos da mesma forma que no dia anterior e foram igualmente agradáveis. Naquela hora ele viu um casal de papagaios sobrevoar sua cabeça. Também cumprimentou o Seu João, o porteiro do condomínio, e viu os garis recolherem o lixo do dia anterior e deixarem um pouco de lixo para trás. No caminho viu um casal de idosos que vez ou outra encontrava e também um menino de patinete verde que corria pelo caminho com seu avô.

Carlos chegou em casa, abriu a porta vermelha com sua chave de chaveiro balão de ar, beijou a filha que estava assistindo desenhos no celular da mãe, pegou uma goiaba na cozinha, tirou as pontas delas e depois a dividiu no meio antes de começar a esmagar com os dentes as sementes dela. Tal rotina era um dos seus prazeres particulares. Ele amava fazer isso toda manhã e ninguém mais além de Deus sabia disso.

Depois, foi ao computador, leu os emails do trabalho e  respondeu os que precisavam de resposta. Olhou algumas notícias rapidamente e foi a sua devocional diária. O plano daquele dia era ler o capítulo 2 de Atos e depois orar. Uma senhora da igreja iria fazer cirurgia e estava com medo. Sua esposa estava com problemas com uma das pessoas do lugar que ela trabalhava. Sua filha estava melhor. Ele orou por suas irmãs e pais. Orou também pelo povo de Deus espalhado pelo mundo e que os missionários continuassem corajosos. Orou por seu pastor e que sua igreja não se entregasse a qualquer problema doutrinário que viesse a afastar de Deus. Orou pelo país e até pelo governador que não elegeu. Pediu perdão pelos pecados. Foi uma oração longa. Ele tinha aprendido a conversar com Deus durante o dia e fazia isso com alegria. Sentia falta quando não fazia. 

Veio o almoço, o lanche da tarde e o jantar. Tudo como manda o figurino. Depois do jantar ele preparou um café forte e bem quente e foi para a calçada da rua. Os pais que tinham saído estavam voltando pra casa com seus filhos dormindo no banco de trás depois da escola, curso de inglês, esporte e não sei mais o que. O sol já não estava mais lá, pois tinha dado lugar a lua que estava meio tímida. O vento estava na intensidade e temperatura certa. 

Foi aí que Carlos sentiu uma dor no peito.

Na fração de segundo que levou até que ele apagasse, só deu pra lembrar de sua esposa e filho e de mais algumas coisas. Ele ficou triste em saber que talvez fosse aquele o ‘até logo’, mas não bateu desespero, não. Ele ficou triste de não poder ver seu filho casando e de não poder conhecer seus netos. Ficou preocupado se sua esposa iria encontrar a prestação da casa que ele tinha colocado no livro de ficção do Ernest Cline que tinha começado a ler. Se lembrou de como era bom estar com ela e de amá-la de todas as formas. Lembrou do dia que a conheceu e como ela estava linda. Lamentou deixá-la para trás.

Mas aí sorriu. 

Era hora de encontrar seu criador. Este mundo é por demasiado triste e existe muita dor. Seu time de futebol não estava indo nada bem. Ele tinha sérios desafios no trabalho e na igreja à vencer, pessoas que deveriam ter coração bom, mas eram mais cruéis que as do mundão. Ainda tinha muitas contas a pagar. Ele já não era um jovem, por assim dizer, e os cabelos brancos nem de perto mostravam o decair que sua saúde tinha tido nos meses anteriores. Muitas pessoas que amava não amavam a Deus. Ele se lembrou das discussões e dos choros e aí viu que era hora da eternidade, uma eternidade em paz com seu Criador, uma eternidade de paz, onde não haveria mais choro.

Porque tinha certeza do cuidado de Deus, sabia que sua família e as gerações dela estariam bem e foi aí que fechou os olhos e se foi.

Não aconteceu nada de mais e, de novo, nem de menos. Não ganhou na loteria, não se matou fazendo sexo, não foi despedido, não lutou com um leão, não foi comer na churrascaria, não viu o time vencer o estadual e nem venceu ou perdeu um Gran Prix de Fórmula 1, mas foi um dia em louvor ao Senhor do momento que acordou até que foi embora. 

Ele sabia que hoje era tão bom quanto amanhã. Não tinha pregas a este mundo, mas ansiava o que viria. Foi um excelente dia! Um bom dia para morrer.

 

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