Primeiras impressões sobre Leão XIV
Introdução
A escolha do nome Leão XIV para novo papa não foi neutra nem meramente estética. O nome “Leão” carrega em si um peso simbólico considerável — evoca a memória de pontífices que marcaram a história da Igreja de Roma com firmeza doutrinária, protagonismo político e presença forte em momentos de crise. Ao optar por esse nome, o novo papa pode estar sinalizando um pontificado de vigor, clareza e autoridade, talvez até de restauração e combate.
Com base no legado dos papas anteriores chamados Leão, podemos vislumbrar algumas interpretações e expectativas possíveis:
🔹 1. Constante embates doutrinários?
Papas como Leão I, que enfrentou heresias e defendeu a cristologia ortodoxa, e Leão IX, que fortaleceu a centralização romana, são lembrados como figuras de resistência teológica. Já Leão XIII se destacou por reagir ao avanço da modernidade e do secularismo com documentos marcantes como Rerum Novarum.
Um Leão XIV poderia vir com uma disposição semelhante: enfrentar os dilemas doutrinários contemporâneos com clareza e autoridade, tratando de temas como ética sexual, identidade de gênero, ecumenismo relativista, secularização crescente e as tensões internas do processo sinodal.
Em tempos de ambiguidade teológica, o nome Leão sugere guinada à tradição, ou ao menos, resgate da ortodoxia romana.
🔹 2. Um papa com ênfase social ou política?
Se o novo pontífice buscar inspiração em Leão XIII, é possível que adote uma postura mais ativa nas grandes causas sociais e políticas do século XXI. Isso incluiria possivelmente um aprofundamento da Doutrina Social da Igreja, aplicada a temas como inteligência artificial, precarização do trabalho, desigualdade global e ecologia integral.
No entanto, essa atuação não seria desprovida de uma visão moral e espiritual mais estruturada — uma tentativa de se posicionar como árbitro ético do mundo globalizado.
🔹 3. Uma reafirmação diante das crises do mundo?
A memória de Leão I enfrentando Átila permanece como um símbolo poderoso da Igreja como defensora da civilização em tempos de caos. Em um cenário global de guerras, perseguições religiosas, colapsos morais e desintegração cultural, um papa que escolha o nome Leão pode querer apresentar-se como um bastião da ordem e da razão contra a barbárie.
Esse tipo de pontificado buscará restaurar a imagem de uma Igreja que guia as nações — não apenas espiritualmente, mas também moralmente e culturalmente.
🔹 4. Estratégia simbólica
Não é por acaso que o nome “Leão” foi adotado tantas vezes por pontífices ao longo dos séculos. Essa escolha carrega um valor simbólico profundo, sempre associado à força, autoridade, clareza doutrinária e firmeza diante de crises. Em tempos de ameaças teológicas, colapsos políticos ou inquietações culturais, um papa que se autodenomina “Leão” está, conscientemente, assumindo uma postura de combate, liderança e restauração. Trata-se de um nome que não apenas aponta para o passado, mas que também projeta intenções claras para o futuro.
O nome “Leão” também carrega conotações imperiais. É romano, autoritário, simbólico. A escolha pode indicar uma tentativa de recentralização do poder papal, especialmente após pontificados que valorizaram a descentralização sinodal e o multiculturalismo.
Como o novo papa veio de fora da Europa — Leão XIV nasceu nos Estados Unidos e exerceu seu longo ministério na América Latina —, a escolha de um nome tão profundamente romano reforça a pretensão universal da Cúria, sinalizando que, independentemente da origem geográfica do pontífice, Roma continua sendo o centro do poder eclesial.
Nessa tradição, os nomes papais não são escolhidos ao acaso: são declarações simbólicas de continuidade, intenção e identidade eclesiástica.
Ao todo, houve 13 papas com esse nome, entre os séculos V e XX. Aqui estão os destaques mais relevantes:
📜 Uma linhagem de papas marcantes
Vamos relembrar os papas que fizeram esse nome ressoar com peso histórico:
🦁 Leão I “Magno” (440–461)
Considerado um dos mais importantes papas da história e doutor da Igreja, Leão I foi protagonista no enfrentamento das heresias cristológicas, como o monofisismo, sendo figura central no Concílio de Calcedônia (451).
Em 452, protagonizou um episódio emblemático: enfrentou Átila, o Huno, e o convenceu a poupar Roma — um gesto que cimentou sua reputação como defensor da civilização cristã.
Foi também um dos principais articuladores da doutrina do primado do bispo de Roma. Nenhum outro papa justificou com tanto mérito o título de Magno.
🦁 Leão III (795–816)
Responsável por um dos momentos mais simbólicos da Idade Média: a coroação de Carlos Magno como Imperador do Sacro Império Romano-Germânico no Natal do ano 800.
Esse gesto selou a aliança entre o papado e o poder carolíngio, estabelecendo uma nova ideia de Europa cristã e reafirmando o papel do papa como mediador entre o trono e o altar.
🦁 Leão IX (1049–1054)
Um dos principais nomes da Reforma Gregoriana inicial, combateu simonia e nicolaísmo, buscando a purificação moral do clero e a centralização da autoridade eclesiástica.
Seu pontificado viu surgir as tensões que resultariam no Cisma do Oriente, em 1054. Ainda que tenha falecido antes da ruptura formal, foi sob sua liderança que a cisão começou a tomar forma.
Fortaleceu o conceito de autoridade papal universal, em contraste com as igrejas orientais.
🦁 Leão X (1513–1521)
Nascido Giovanni de’ Medici, foi mais um príncipe renascentista do que um reformador. Seu pontificado coincidiu com o início da Reforma Protestante: foi ele quem excomungou Martinho Lutero em 1521.
Sua gestão foi marcada por luxo, patronagem artística e desdém pelas tensões espirituais crescentes — muitos o culpam por ter subestimado a gravidade do desafio protestante.
🦁 Leão XII (1823–1829)
Embora menos lembrado, o papa Leão XII (Annibale della Genga) também contribui significativamente para o peso simbólico do nome.
Seu pontificado se deu logo após o turbilhão das guerras napoleônicas, quando os Estados Papais tentavam se reorganizar diante da crescente influência do liberalismo e do pensamento iluminista.
Leão XII reagiu com força: reativou a Inquisição Romana, impôs restrições severas à liberdade religiosa, restringiu os guetos judaicos e tentou moralizar a sociedade com leis repressivas contra o jogo, festas populares e comportamentos considerados imorais.
Ao mesmo tempo, promoveu reformas administrativas e buscou restabelecer boas relações diplomáticas com potências como França e Áustria.
Seu legado é o de um papa reacionário, símbolo do cerco conservador da Cúria Romana à modernidade.
🦁 Leão XIII (1878–1903)
Um papa profundamente influente no século XIX. Sua encíclica Rerum Novarum (1891) lançou as bases da Doutrina Social da Igreja, propondo um caminho entre o liberalismo econômico e o socialismo marxista.
Buscou reconciliar a Igreja com o mundo moderno, após séculos de conflito com os Estados laicos e liberais. Foi também um promotor da filosofia tomista, e o primeiro papa a ser amplamente fotografado e filmado, trazendo o papado para a era da imagem.
Outros Leões incluem:
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- Leão II (682–683), que confirmou as decisões do Concílio de Constantinopla III;
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- Leão IV (847–855), que fortaleceu as defesas de Roma contra os sarracenos.
Outros papas com esse nome tiveram pontificados breves ou de menor impacto.
- Leão IV (847–855), que fortaleceu as defesas de Roma contra os sarracenos.
🧭 Uma linha de continuidade simbólica
O que une essa sucessão de papas chamados “Leão”? Alguns traços notáveis:
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- Defesa da ortodoxia doutrinária (Leão I, Leão IX, Leão XIII)
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- Afirmação da autoridade papal em tempos de crise política (Leão I, Leão III, Leão IX)
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- Intervenções decisivas na história europeia (Leão III com Carlos Magno; Leão X com Lutero)
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- Produção doutrinária significativa (Leão XIII e a Doutrina Social)
Como vimos, o que une essa linhagem não é apenas o nome, mas o padrão simbólico que ele representa: defesa da ortodoxia doutrinária, afirmação da autoridade papal diante de ameaças políticas e intervenções marcantes na história europeia.
Leão XIV deverá se posicionar em continuidade com essa tradição combativa e centralizadora — o leão que ruge quando o mundo estremece.
🔹 5. Reação ao papado anterior
Leão XIV sucede o papa Francisco I, com quem manteve uma relação próxima ao longo dos anos. No entanto, o novo pontífice pode buscar diferenciar-se simbolicamente de seu antecessor, cuja gestão foi frequentemente percebida como ambígua em questões doutrinárias, descentralizadora na governança e progressista no tom pastoral.
A escolha do nome Leão pode, portanto, ser interpretada como um chamado à ordem, à clareza teológica e à disciplina eclesiástica, especialmente se o objetivo for restaurar a autoridade magisterial diante de um cenário eclesial fragmentado.
Ainda que opte por uma postura mais tradicional, Leão XIV pode buscar traduzir essa firmeza por meio de uma linguagem contemporânea e acessível, preservando elementos centrais do legado de Francisco I, mas reposicionando o papado com mais ênfase na unidade doutrinária e na autoridade central de Roma.
✠ Uma crítica reformada: o leão que ruge em Roma, mas não é o Leão de Judá
Do ponto de vista da fé reformada, no entanto, é necessário olhar além do simbolismo e avaliar o que está em jogo à luz das Escrituras.
A figura do papa, tal como concebida pela Igreja de Roma, representa uma das principais divergências entre a fé reformada e o catolicismo romano. Para os Reformadores do século XVI e para as confissões históricas do protestantismo, o papado não é apenas um erro administrativo ou teológico — ele é, na essência, uma usurpação da autoridade exclusiva de Cristo sobre a sua Igreja.
O papado representa uma instituição que, ao longo dos séculos, usurpou a autoridade exclusiva de Cristo sobre a Igreja. A Palavra de Deus afirma que: “Cristo é o cabeça do corpo, da igreja; é o princípio e o primogênito dentre os mortos, para que em tudo tenha a supremacia.” (Colossenses 1:18).
Protestantes e teólogos ortodoxos orientais rejeitam essas alegações. Os protestantes sustentam que somente a Escritura (sola scriptura) é a autoridade final em questões de fé e doutrina, não as declarações de um único líder da igreja (2 Timóteo 3:16-17). A Igreja Ortodoxa Oriental mantém uma visão conciliar da autoridade, onde a igreja é liderada por conselhos de bispos em vez de um único líder supremo.
O Novo Testamento não concede a nenhum homem — nem mesmo ao apóstolo Pedro — a posição de chefe supremo da Igreja visível. Pelo contrário, a liderança na Igreja primitiva era colegiada, exercida por presbíteros e apóstolos de forma mútua, e sempre subordinada à autoridade de Cristo, revelada nas Escrituras (Atos 14:23; 1 Pedro 5:1–4; Efésios 4:11–16).
Nenhum homem pode reivindicar o papel de vigário de Cristo na terra, pois o verdadeiro Vigário é o Espírito Santo, enviado pelo próprio Senhor para guiar sua Igreja em toda a verdade (João 16:13).
Mais do que um problema estrutural, o papado representa, na perspectiva reformada, um desvio doutrinário grave. Ao reivindicar infalibilidade magisterial (Concílio Vaticano I, 1870), ao instituir práticas sem base bíblica (como o culto a Maria, o purgatório, as indulgências e a mediação dos santos), e ao substituir a suficiência da Escritura pela tradição romana, o sistema papal obscurece a simplicidade e a centralidade do evangelho de Cristo.
Por mais que um futuro Leão XIV deseje restaurar a ordem moral ou doutrinária, a raiz do problema permanece: o papado sustenta doutrinas antibíblicas — como a infalibilidade papal, a mediação dos santos, o purgatório, a justificação por obras e a mariolatria — que distorcem o evangelho de Cristo.
O Novo Testamento apresenta consistentemente Jesus como o fundamento da Igreja, não qualquer apóstolo individual. Em 1 Coríntios 3:11, Paulo escreve: “Porque ninguém pode lançar outro fundamento além do que está posto, que é Jesus Cristo”. Efésios 2:20 descreve a Igreja como “edificada sobre o fundamento dos apóstolos e profetas, sendo o próprio Jesus Cristo a principal pedra angular”. Essas passagens sugerem que a Igreja é construída sobre o ensino dos apóstolos a respeito de Cristo, não sobre os próprios apóstolos, com Jesus como o fundamento final.
🙌 A verdadeira catolicidade
A Igreja reformada não nega a catolicidade da Igreja, ou seja, sua universalidade e unidade espiritual. Mas essa unidade não está baseada em uma cátedra em Roma, e sim na fidelidade à Palavra de Deus e na confissão de Cristo como Senhor. A verdadeira Igreja católica, dizem os reformadores, é aquela em que a Palavra é pregada fielmente, os sacramentos são administrados conforme as Escrituras, e a disciplina é exercida em amor e verdade.
“Onde quer que a Palavra de Deus seja pregada com pureza, os sacramentos sejam administrados segundo a ordenança de Cristo, ali está a verdadeira Igreja de Deus.”
(João Calvino, Institutas, IV.1.9)
✠ Conclusão: nem Roma, nem um homem — só Cristo
A crítica reformada ao papado não nasce de animosidade, mas de zelo pela pureza do evangelho. Enquanto Roma mantiver uma estrutura que coloca um homem como mediador supremo, intérprete final das Escrituras e juiz da Igreja universal, ela continuará em desacordo com a doutrina apostólica.
O povo de Deus deve olhar não para uma figura revestida de glória terrestre, mas para o Cordeiro de Deus, que venceu:
“Não chores! Eis que o Leão da tribo de Judá, a raiz de Davi, venceu para abrir o livro e os seus sete selos.”(Apocalipse 5:5).
É esse Leão — e não o de Roma — que governa sua Igreja com justiça, graça e verdade.
Isaías Lobão
Professor do ensino básico, técnico e tecnológico do Instituto Federal de Tocantins. Professor de teologia em diversos seminários evangélicos. Doutorando em História pela Universitat de València, Espanha. Mestre em Teologia pela Faculdade EST. Bacharel e licenciado em História pela UnB. Especialista em docência do ensino superior pela FALBE e em gestão pública pela Faculdade Metropolitana de São Paulo. Bacharel em Teologia pela Faculdade Teológica Cristã Evangélica e pala Faculdade de Ciências, Educação e Teologia do norte do Brasil. Atualmente é pesquisador do GP-GIM (Gestão, Inovação e Mercados do Instituto Federal de Goiás) e do Projeto de Estudos Judaico-helenísticos (PEJ-UnB). Membro da World Reformed Fellowship, da Society of Biblical Literature e do Grupo de Estudos Constitucionais e Legislativos (GECL) do Instituto Brasileiro de Direito e Religião (IBDR).
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